sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Divagações sobre Paulo Freire, Jesus e as escolas que existem por aí....



A primeira que vez que ouvi falar de Paulo Freire não foi para prestar nenhum concurso de professor, tão pouco foi em algum resumo mal feito de apostila para concurso. Foi aos 16 anos, através da professora Esther, idealista e apaixona pela educação, que apresentou à mim e às 31 meninas de nossa turma de magistério, algumas idéias do maior educador do Brasil, buscando fundamentar nossa escolha profissional na perspectiva da aprendizagem, e não do ensino. Encorajava-nos a não reproduzirmos a educação imposta, cujo único fim é produzir mão de obra qualificada para o mercado de trabalho, mas nos posicionarmos eticamente por uma educação libertadora, questionadora, contextualizada, popular. Na semana que Esther prometeu me levar para conhecê-lo, dizendo se tratar de um homem simples, que andava de sandálias de couro, acessível, bom ouvinte..., os jornais noticiaram sua morte.   A frustração me impulsionou a querer conhecer mais, saber mais. E para uma menina não habituada à linguagem complexa dos grandes pensadores, “Cuidado Escola” foi uma experiência arrebatadora.
   E conforme leio e releio Freire, ou leio e releio os evangelhos de Jesus Cristo, mais sou convencida de que meu papel como educadora e como pessoa humana são uma coisa só. Jesus, a quem apaixonadamente tento seguir, ensinou a amar os inimigos, a oferecer o outro lado da face para o agressor desferir quantos golpes quisesse, a esperar que as pessoas colham pelo que plantarem, despojando os seres humanos do direito de vingança. Falou e fez exatamente isso, quando preso e torturado até a morte. Mas Jesus parece incoerente quando deixa dominar-se pela cólera e, com violência, expulsa os comerciantes do templo. Em seus discursos, insultava com palavras duras os religiosos e pessoas de grande influência social. Percebi, na figura daquele a quem nós, cristãos, dizemos imitar, que quando se tratar de defender a mim mesma, a justificar minhas escolhas, devo padecer passivamente a toda injúria que me seja feita. Mas jamais, jamais, como cristã, posso me calar diante da opressão de um povo que não sabe defender a si mesmo da ideologia do desvalor, da escravidão lícita, empresária, liberal, que é reproduzida pelo sistema educacional. Algumas escolas se empenham em pressionar seus professores para que os índices nas avaliações institucionais subam e a fama de sua unidade melhore (com provas mais fáceis a cada ano isso não é tão difícil...). Não se sentem diretamente responsáveis pelo fracasso social a que expoem  cada aluno de suas escolas toda vez que se recusam  a ler, formar, discutir com o quadro de educadores ações efetivas à favor da formação crítica e desalienante. Para escolas assim, basta que o aluno seja capaz de assinalar com X a alternativa correta e investir em marketing mentiroso, de pseudo-sucesso, no primeiro concurso inter-estadual que surgir... Nas palavras de Freire, "basta que saibam ler que EVA VIU A UVA”. Para o educador que se posiciona contra a miséria, “é preciso fazer com que o aluno compreenda a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho” (Pedagogia do Oprimido).
   Que ironia pensar que Paulo Freire foi quem implantou a formação continuada de professores nas escolas de São Paulo! Há escolas em que as leituras formativas simplesmente não ocorrem, onde as discussões e questionamentos são interrompidos por falas mastigadas, falácias prontas, de gente catequizada, que acha que prática pedagógica  e ação política podem ser desassociados.
   Gestores fiéis à doutrina de Maquiavel, fazem algumas obras para ganhar visibilidade, garantindo que a comunidade espoliada, ao invés de rebelar-se, aplaudam a consagração da mediocridade; claro, também não esquecem de exercer a principal lei maquiavélica: “É preferível ser temido do que amado”. Reafirmam seu autoritarismo com sorrisos singelos capazes de fazer qualquer professor adoecer... Porém, em meio às arbitrariedades, as oportunidades de aprender acontecem, sempre. Mesmo em ambientes como esses, durante os intervalos para cafés e conversas paralelas a formação oficiosa ocorre: quem leu Dostoiévisky ou Herman Hesse, apresenta suas obras a quem não leu. Quem já morou na Argentina ou Espanha, compartilha suas experiências transculturais. Quem é idealista, empolga-se em recontar histórias de resistência à Ditadura militar e seus exilados. Quem é reclamador, ensina que insatisfação não necessariamente é inconformismo. Quem é apreciador desse sistema, ensina que não se deve  subestimar o poder dos panos-quentes e do auto-engano.   (Graças à Deus trabalho em uma escola inversa a tudo isso, mas não é porque tenho tamanha sorte que vou deixar de me solidarizar com seres humanos infelizes que trabalham em lugares como esses - que eu tenho certeza que existem).
   Pra encerrar, divaguemos mais um tantinho em Paulo Freire, em uma de suas citações que acho maravilhosa:

Estar no mundo sem fazer
história, sem por ela ser feito, sem fazer
cultura, sem tratar sua própria presença no
mundo, sem sonhar, sem cantar
sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra,
das águas, sem usar as mãos, [...], sem
filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo
[...] sem assombro em face do mistério, sem
aprender, sem ensinar, sem idéias de formação,
sem politizar, não é possível.”

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Então é Natal!

DATAS COMEMORATIVAS NAS ESCOLAS BRASILEIRAS E ALIENAÇÃO




   Faz muito tempo que me sinto extremamente incomodada com algo que considero bastante grave nas escolas por onde passei: a recusa dos educadores em refletirem, discutirem e organizarem projetos ou aulas que “desconstruam” a relação entre data comemorativa e consumismo. Todo início de ano é a mesma coisa: durante a reformulação do projeto pedagógico da escola não há espaço para um planejamento com ações voltadas à análise crítica das datas comemorativas. Comumente as professoras e professores improvisam uma atividade copiada de algum blog na internet ou das centenas de álbuns do “Picasa” com coelhos fofos e “papais noéis” graciosos. Há escolas que planejam melhor: economizam algum tipo de verba para contratarem um Papail Noel que dê pirulitos ou compram ovos pequeninos de chocolate aos montes... Quando questiono os colegas sobre a razão de ações como essas, geralmente respondem que “coitados, muitos desses meninos só terão esse pequeno ovo, pois são tão pobres que não ganharão um...”. Ora! Com a avalanche de propagandas de ovos de chocolate de toda sorte, tamanho, com e sem brinquedos dentro, a criança se sentirá consolada com um ovo de 50 gramas? Não. Continuará desejando um grande e pesado ovo de páscoa do Ben10. Sentir-se-á igualmente excluído, marginalizado, miserável. A perpetuação pelas escolas da figura de um Papai Noel que ao invés de dar um vídeo game ou uma bicicleta oferece um pirulito é irônica e cruel. A fome de dignidade e inclusão do pobre é sanada quando lhe ensinam que não é um fracassado, mas que o sistema capitalista é que é desumano, que pessoas inteligentes devem resistir bravamente à ordem imperativa da mídia: “Jesus nasceu! Vamos ao Shopping?”. O educador humanista não reproduz o sistema de consumismo, exclusão e marginalização, mas ensina aos seus alunos que as pessoas valem pelo que são, não pelo que têm. O filme brasileiro “Quanto vale ou é por quilo?”, do diretor Sérgio Bianchi¹ faz uma analogia interessante entre o período de escravidão e as políticas sociais brasileiras dos nossos dias. Mas o que me chocou mesmo foi relembrar da função dos negros capitães do mato: capturar negros fugidos. Fiquei pensando que se ao invés de incentivar a liberdade do pensamento, um professor apenas contribui em reproduzir os costumes e falácias capitalistas não estaria, da mesma forma, agindo como o capitão do mato?

O curioso é que a documentação pedagógica das escolas mencionam como objetivo “a formação de cidadãos autônomos, crítico e, participativos” (conforme constam nos Parâmetros Curriculares Nacionais²) e na prática não há espaço para que essas habilidades sejam desenvolvidas.

Tomemos como exemplo o famigerado velhinho de barbas brancas: quem é o papai Noel? São Nicolau foi um bispo turco, do século II d.c. que ajudava os pobres no inverno. Na Alemanha sua imagem era de um velhinho com roupas de inverno verdes ou marrom. No ano de 1934 a Cola-cola lançou uma campanha de marketing com São Nicolau (ou Santa Claus, como preferem os americanos) vestido de vermelho com botas e cintos pretos, cores do refrigerante. Um símbolo claro do capitalismo, é isso que as crianças pintam nas folhas mimeografadas nas escolas. E mesmo que se comportem bastante durante todo o ano, o “bom velhinho” não aparecerá em suas casas. Como diria a banda Garotos Podres³: “Papai Noel, velho batuta, rejeita os miseráveis. Presenteia os ricos e cospe nos pobres.”

Não há prática discente sem política, porque educação e política são uma coisa só. Ou estimulo meus alunos à criticidade ou reproduzo o sistema dominante. Paulo Freire (1996) confere aos educadores a missão de lutar contra o determinismo:

Não se trata, obviamente, de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, de desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação não é o destino ou vontade de Deus, algo que não possa ser mudado. [...] Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra o que devemos lutar, tenho, enquanto educador, de me ir tornando cada vez mais competente, sem que a luta perdera a eficácia.


Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto ou aquilo. [...] Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura”.



O tema “Datas comemorativas” é tão complexo que cabe ainda tratarmos outro aspecto que não pode ser ignorado: a imposição religiosa em um Estado Laico. Alunos judeus, budistas, testemunhas de Jeová, mulçumanos, ateus e evangélicos de algumas denominações que não comemoram Natal e Páscoa, são ignorados e convidados a pintar o coelho da páscoa e o Papai Noel. Ouvem sobre a ressurreição e morte de Jesus, independentemente do que crêem. Sou cristã apaixonada e não gostaria que me enfiassem goela abaixo que Maomé é um profeta messiânico que ascendeu aos céus, vivo, em um cavalo. Respeito, mas não é essa minha profissão de fé. Da mesma forma não devo também respeitar outras crenças que se distinguem da minha? A professora e autora do livro “Ensino Religioso em Escolas Públicas: Impactos sobre o Estado Laico”, Roseli Fischman, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), perita da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Coalizão de Cidades contra o Racismo e a Discriminação, responsável pelo capítulo sobre pluralidade cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em entrevista à Revista Nova Escola (2009) afirma que:



No artigo 19 da Constituição, há dois incisos claros. O primeiro afirma ser vedado à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. O outro proíbe criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Ambos são os responsáveis pela definição do Estado laico, deixando-o imparcial e evitando privilegiar uma ou outra religião, para que não haja diferenças entre os brasileiros. Ora, se o Estado é laico, a escola pública, que é parte desse Estado, também deve sê-lo. [...]Não importa se a escola tem só um estudante de fé diferente (ou ateu) ou se 100% dos alunos e funcionários compartilham a mesma crença. A escola é um espaço público e deve estar preparada para receber quaisquer pessoas com o respeito devido. [...] A grande presença no interior das escolas brasileiras ainda é a de práticas católicas. De outros grupos, o que existe muitas vezes é a manifestação de valores e atitudes, voltadas para garantir respeito à sua identidade religiosa, para se defender de tentativas de imposição, notadamente dos católicos. [...]A religião não impede a violência. A idéia de que ela sempre faz bem é equivocada. Basta lembrar que grande parte das guerras teve origem em conflitos religiosos. Na escola, a violência deve ser combatida com o ensino ao respeito e ao reconhecimento da dignidade intrínseca a todos, não com o pensamento de que apenas as pessoas que acreditam na mesma divindade merecem consideração. [...]A escola pública não pode se transformar em centro de doutrinação ao sabor da cabeça de um ou de outro. O espaço público é de todos. Além disso, o respeito à diversidade é um conteúdo pedagógico. É importante aprender a conviver com as diferenças e a valorizá-las e não criar um ambiente de homogeneização, em que aquela pessoa que não se enquadra é deixada à parte ou vista com desconfiança e preconceito”.



Ignorar a presença das comemorações e influência das mídias em nossa sociedade também não contribui em nada na formação dos alunos como cidadãos autônomos e críticos. Cabe ao professor humanista aproveitar essas e outras datas, como o Dia das Crianças, Dia das Mães, Dia dos Pais... para desenvolver um trabalho bem planejado e teoricamente bem pautado.



ELIANE PINHEIRO












Notas:

1.BIANCHE, Sérgio. Quanto vale ou é por quilo? Produção e direção de Sérgio Bianche. Rio de Janeiro: Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda, 2005.

2.BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução. 3 ed. Brasília: MEC, vol 1, 1997.

3. MAURO/MAO/SUKATA. Papai Noel, velho batuta. Garotos Podres. In: Mais podres do que nunca. LP, 1985, Rocker/Lup-Som.

4.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

5.FISCHMANN, Roseli. "Escola pública não é lugar de religião". São Paulo: Revista Nova Escola Gestão Escolar, Edição 004, Outubro/Novembro 2009. Entrevista concedida a Amanda Polato.